A investigação dos Estados Unidos sobre propriedade intelectual no Brasil não deixe de ser uma resposta às ameaças iniciais do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de retaliar, na área da propriedade intelectual, as tarifas de 50% anunciadas por Donald Trump. Ainda assim, em certo ponto, a investigação pode até mesmo auxiliar a indústria brasileira.
Isso porque, ao endurecer as regras contra a quebra de direitos de propriedade intelectual, a administração Trump pode ajudar a cercear um mercado de falsificações que movimentou US$ 83 bilhões no Brasil em 2024 — mais de R$ 463 bilhões, na cotação desta segunda-feira (28).
Os dados são do Anuário de Falsificação 2025, feito pela Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF). Entre 2023 e 2024, o prejuízo total do mercado subiu cerca de 26%, já que, em 2023, foram comercializados US$ 66 bilhões em falsificações.
Dentre os setores mais afetados pelas falsificações, estão o de bebidas alcoólicas, vestuários e combustíveis, que acumulam praticamente um terço das perdas. Material esportivo, perfumes e defensivos agrícolas vêm em seguida.
Ainda segundo o levantamento da ABCF, as vendas de produtos ilegais online mais que triplicaram desde antes do início da pandemia. Naquele momento, 10% de todo o comércio ilegal era feito pela internet. Já em 2024, essa via de comercialização passou a representar 36% das vendas de produtos falsificados.
Brasil e Estados Unidos são signatários de tratado internacional contra falsificações
Mesmo que a investigação tenha sido movida de forma unilateral pelo governo americano, o Brasil e os Estados Unidos são signatários do Acordo sobre Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual, ou Trips (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Trata-se de um conjunto de normas que prevê a proteção da propriedade intelectual e regras de comércio de produtos entre países. O mestre e perito em propriedade intelectual Luciano Andrade Pinheiro afirma que a pirataria é um problema mundial.
“Não é um ilícito que ocorre só no Brasil. Nós temos leis que criminalizam a pirataria, mas é um combate difícil por vários fatores”, afirmou.
Ao anunciar a investigação, o Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR), citou a Rua 25 de Março, em São Paulo. “A região tem permanecido, por décadas, como um dos maiores mercados de produtos falsificados, apesar das operações realizadas para combatê-la”, afirma.
Anteriormente, a 25 de Março havia sido citada, também pela USTR, no relatório “Mercados Notórios por Falsificação e Pirataria”, que mapeia esses locais em todo o mundo a fim de ajudar a proteger marcas americanas.
As medidas que os EUA podem impor com investigação contra o Brasil
No campo da propriedade intelectual, as sanções americanas podem ser abrangentes. Fernando Canutto, do Godke Advogados, lista possíveis medidas:
- tarifas seletivas sobre softwares, filmes e produtos tecnológicos brasileiros;
- exclusão do Brasil do Sistema Geral de Preferências (SGP);
- imposição de testes técnicos rigorosos; e
- sanções específicas à Rua 25 de Março e a Foz do Iguaçu como zonas críticas de pirataria.
Ainda que possam coibir as falsificações, as medidas também podem prejudicar a indústria no Brasil. A exclusão do SGP, por exemplo, poderia elevar os custos de exportação para alguns produtos brasileiros. Já a criação de requisitos adicionais e auditorias especiais poderia dificultar a entrada de produtos no mercado americano.
No caso das sanções regionais (25 de Março e Foz do Iguaçu), além de afetar as empresas que não respeitam as normas de propriedade intelectual, elas podem acabar penalizando aquelas que as respeitam mas que atuam em áreas consideradas problemáticas.
Investigação contra o Brasil é reação a ameaças de retaliação
Até certo ponto, a investigação dos Estados Unidos contra o Brasil pode ser fruto da retórica do governo brasileiro. Logo após o anúncio das tarifas de 50% para o Brasil, autoridades do governo Lula anunciaram possíveis retaliações no campo da propriedade intelectual.
Dentre as medidas consideradas pela gestão petista estavam a suspensão de patentes, marcas e direitos autorais americanos. Nesse sentido, foi cogitado, por exemplo, permitir a quebra de patentes ou o uso sem o devido pagamento de royalties de tecnologias e medicamentos de empresas americanas.
Além disso, o Brasil ainda poderia atrasar o já demorado processo para os registros de propriedade intelectual — média de 7 anos, e 9,5 anos para patentes farmacêuticas — e reduzir a proteção a obras americanas.
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Medidas de retaliação desmoralizam ambiente de negócios e afastam investidores
Para Luís Garcia, do Tax Group, a utilização de direitos de propriedade intelectual como forma de retaliação aos EUA gera preocupações sobre segurança jurídica. O especialista destaca que investidores buscam estabilidade e que, desse modo, medidas que afetem a propriedade intelectual de forma abrupta tendem a desencorajar investimentos estrangeiros.
Do mesmo modo, Luciano Pinheiro afirma que o desenvolvimento tecnológico está intrinsecamente ligado à proteção da propriedade intelectual. “Os investimentos na criação de novas tecnologias precisam ser de alguma forma compensados para que haja estímulo na continuidade do processo de inovação”, disse.
E o Brasil já sente o peso da guerra comercial nesse ponto. Dados do Banco Central divulgados na sexta-feira (25) mostram que o Investimento Direto no País (IDP) no primeiro semestre recuou 10,7% em relação ao mesmo período de 2024, chegando a US$ 33,8 bilhões. O valor é o menor desde o primeiro semestre de 2021:
- 1° semestre de 2021: US$ 26,8 bilhões;
- 1° semestre de 2022: US$ 38 bilhões;
- 1° semestre de 2023: US$ 35,3 bilhões;
- 1° semestre de 2024: US$ 37,8 bilhões;
- 1° semestre de 2025: US$ 33,8 bilhões.
Experiência anterior mostra riscos de retaliações
O advogado tributarista Leonardo Roesler lembra que a suspensão de obrigações em propriedade intelectual “tem peso simbólico e econômico elevado” contra os EUA, mas que pode ser um tiro no pé da economia brasileira.
Em 2013, diferentemente do que ocorre neste momento, a experiência no contencioso do algodão entre Brasil e EUA, quando a OMC reconheceu a causa brasileira, mostrou que a mera ameaça de retaliar na área de propriedade intelectual foi suficiente para os americanos buscarem um acordo.
No entanto, a decisão do governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) também provocou reação negativa de setores nacionais dependentes de transferência tecnológica vinda dos EUA.
Como mencionado anteriormente, medidas na área de propriedade intelectual afetam diretamente os royalties, marcas e patentes de empresas estrangeiras, inclusive as que têm representação e filiais no Brasil e produz efeitos colaterais relevantes na economia nacional.
Segundo Roesler, a insegurança pode fazer com que empresas e investidores revejam seus “planos de pesquisa e desenvolvimento no Brasil”. Além disso, cadeias multinacionais podem redirecionar seus centros de inovação em busca de países com maior segurança nesse quesito.
Equilíbrio pode estar distante
A professora Roberta Portella, especialista em Direito e Relações Internacionais de Comércio da FGV, afirma que, de acordo com as normas da OMC, as medidas na área da propriedade intelectual deveriam ter “caráter temporário e proporcional”. Segundo ela, o objetivo não é “promover guerra comercial”, mas “restabelecer o equilíbrio” e obrigar a negociação entre as partes.
No entanto, a busca pelo equilíbrio pode não ser o caminho mais óbvio no cenário atual. Leonardo Roesler comenta que o clima turbulento no qual se insere a investigação dos EUA contra o Brasil alimenta o discurso de Trump, munindo-o com arsenal para pressões adicionais.
A mescla entre medidas comerciais e políticas, e as respostas do Judiciário e do governo brasileiro ao tarifaço, podem fazer com que o Brasil enfrente não somente novas elevações tarifárias, mas também seja alvo de medidas financeiras seletivas contra indivíduos e entidades, entre outras sanções.
E o governo americano, até o momento, não apresenta sinais de voltar atrás na aplicação das tarifas ou em sua investigação. Neste fim de semana, durante anúncio de acordo com a União Europeia, Trump reiterou que as tarifas para o Brasil passarão a vigorar a partir do dia 1.º de agosto.
Entenda a investigação sobre propriedade intelectual contra o Brasil
No dia 15 de julho, com a escalada das tensões comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos, o Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR), sob os parâmetros da Seção 301 da Lei de Comércio de 1974 — criada para responder a práticas estrangeiras “discriminatórias” que afetem o comércio americano —, abriu investigações contra o Brasil.
Ao todo, seis áreas estão sendo investigadas: ações contra redes sociais e o Pix, tarifas injustas, combate à corrupção, propriedade intelectual, acesso ao mercado de etanol e desmatamento ilegal.
Em relação à propriedade intelectual, os EUA dizem que o Brasil falha em combater efetivamente a importação, distribuição, venda e uso generalizado de produtos falsificados e dispositivos de streaming ilícitos.
Eles citam a Rua 25 de Março, em São Paulo, como um grande mercado de produtos falsificados. Outro ponto destacado foi a demora nos pedidos de patentes.
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